tree | INF1 Uma vez o meu marido foi fazer uma covinha de carvão.
|
tree | A gente não tínhamos lá nada em casa para comermos.
|
tree | Era um rebanho de filhos.
|
tree | E não tínhamos nadinha em casa.
|
tree | E ele foi de noite…
|
tree | De dia cortou a a torga, e de noite foi queimá-la e mais uma filha que eu tenho em Lisboa.
|
tree | Com a Ermesinda.
|
tree | INF2 Ia indo à fugida!
|
tree | INF1 Ainda a Ermesinda…
|
tree | A Ermesinda tinha sete aninhos.
|
tree | INF2 Ia indo à fugida, não era?
|
tree | INF1 E deu em nevar.
|
tree | fugidas!
|
tree | INF2 Às fugidas, senão os da Junta!…
|
tree | INF1 Senão roubavam-no-lo.
|
tree | A Junta tirava-no-lo.
|
tree | INF2 Senão os da Junta ainda lhe ele roubavam tudo.
|
tree | INF1 Pois, tiravam.
|
tree | INF2 Porque era metade para eles.
|
tree | INF1 Era.
|
tree | E metade para a guarda.
|
tree | E então [vocalização] o meu o meu marido…
|
tree | INF2 Tempos tristes!
|
tree | INF1 Começou a nevar, a nevar,
|
tree | e ele a fazer a queimar o carvãozinho,
|
tree | e a neve a cair de cima da menina e dele, [vocalização] de noite, pelo escuro da serra, no monte, muito longe, quase ao pé da Senhora da Lapa.
|
tree | E então ele, em menos de nada sentia: "Uh [vocalização] "!, os lobos a uivarem.
|
tree | "Uh"!
|
tree | E a pequena dizia assim: "Ó pai, que é aquilo"?
|
tree | "Ó minha filha, aquilo não é nada.
|
tree | É [vocalização] uma raposa que para aí anda.
|
tree | Nós já nos vamos de caminho"!
|
tree | Coitadinho, nem deixou acabar de de queimar o carvãozinho,
|
tree | abafou consoante estava,
|
tree | pegou na menina aqui ao, ao ao [nome], no pescoço, a rapariguinha já com sete anos…
|
tree | escuras por aquelas pedras!
|
tree | Por aqueles penedos afora e por aquele mato!
|
tree | E os lobos, dois, a seguirem-nos!
|
tree | INF2 Isso é que são trabalhos!
|
tree | INF1 Até aqui à entrada de [vocalização] do povo, vieram com ele dois lobos e com a pequena.
|
tree | E eles E ele dizia assim: "Eu só tinha medo se me comia a pequena!
|
tree | Se me eles botavam…
|
tree | Se se botavam a mim e eu deixava cair a pequena
|
tree | e ma engoliam logo"!
|
tree | INF2 Pois era.
|
tree | INF1 "Eu só tinha"…
|
tree | Ai, tantos trabalhinhos, tanta fominha que a gente passou, ó minha senhora!
|
tree | INF2 E a, e, e a E a nós, aconteceu-nos também uma partida,
|
tree | mas deixe.
|
tree | Não se pode dizer mais, deixe!
|
tree | INF1 Tanta fominha!
|
tree | Tanta fome!
|
tree | |
tree | INF2 Os da Junta deram um bocado de serra ao meu pai e ao meu compadre Eustáquio.
|
tree | De noite.
|
tree | E foram também.
|
tree | "O carvão que der é metade para vós e metade para nós".
|
tree | INF1 "E metade para nós".
|
tree | INF2 Fizeram uma poça dele.
|
tree | INF1 Ainda na Junta, o melhor que tínhamos era o Evandro, o pai do meu Everardo.
|
tree | INF2 Queimaram [pausa] .
|
tree | Queimaram uma cova dele,
|
tree | mas já deu para tarde, para de noite.
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | Dava para muito de noite.
|
tree | INF2 Ao outro dia – aquilo está apagado – e ao outro dia foram.
|
tree | Cortaram mais
|
tree | e queimaram
|
tree | e foram tirá-lo.
|
tree | Mas já deu para de noite.
|
tree | INF1 Já deu para de noite.
|
tree | INF2 O meu pai disse assim…
|
tree | Fui eu, mais o meu irmão e o meu pai – Deus lhe perdoe – e mais o meu compadre.
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 E assim: "Deixa estar que nós agora haviademos os amolar, aos da Junta".
|
tree | INF1 E vossemecês ainda não eram dos que tinham mais precisão, graças a Deus!
|
tree | INF2 Pois não, graças a Deus!
|
tree | Mas ele também às vezes iam,
|
tree | como eram muitos filhos e assim, lá iam.
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 E como foi assim para todos, também deram,
|
tree | e ele também foi,
|
tree | também aceitou [pausa] um bocado.
|
tree | Que é que eles fazem?
|
tree | Tiraram para cada sua saca.
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 "Deixa estar que também os da Junta não hão-de comer tudo"!
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 Com tanto suor, tanto trabalho!
|
tree | E E lá para cima para a Serra da Lapa.
|
tree | INF1 E tanto frio!
|
tree | E tanto fome!
|
tree | INF2 De noite.
|
tree | Depois o meu compadre e o meu pai – Deus lhe perdoe – tiraram quatro saquinhas.
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 Duas sacas para o meu compadre…
|
tree | INF1 E duas para ele.
|
tree | INF2 E duas sacas para nós.
|
tree | Quer dizer, eu trouxe uma saca para o meu compadre [pausa] e o meu compadre trouxe outra.
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 E o meu pai – Deus lhe perdoe – e o meu irmão trouxeram para cada um sua.
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 Mas já era muito assim cerro, de noite,
|
tree | e escureceu-nos já lá metidos na Serra da Lapa, [pausa] para os lados de Forca, passados os Três Corvos.
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 E começa a escurecer, a escurecer,
|
tree | e nós com medo que a outra malta nos não vissem,
|
tree | INF1 Pois.
|
tree | INF2 ora para onde é que o meu compadre foi cortar?
|
tree | INF2 Para a Serra de Forca.
|
tree | INF1 Ai Jesus!
|
tree | INF2 Para aquele Para aquele matagal muito forte!
|
tree | INF1 Jesus!
|
tree | INF2 Olhe e escureceu!
|
tree | Nós só víamos neve branca nas urgueiras, aquele assim gelo branco, muito branco!
|
tree | INF1 É.
|
tree | Ai, a gente passou trabalhinhos!
|
tree | INF2 E ele o meu pai – Deus lhe perdoe – diz assim: "Ó compadre"…
|
tree | INF1 Esta gente agora nem sabem que são criados no mundo!
|
tree | INF2 "Ó compadre, nós nós andamos perdidos na serra".
|
tree | [pausa] E diz ele assim: [pausa] "Olha pois andamos nós…
|
tree | Andamos muito, que já estamos quase ao aos cimas dos soutos de Forca".
|
tree | INF1 Pois era.
|
tree | INF2 "Ai, para onde nós estamos?!
|
tree | Onde nós estamos metidos?!
|
tree | Ai, que aonde nós estamos metidos?!
|
tree | Aonde é que nós agora vamos sair"?
|
tree | As pedras eram tantas, os pedrões, aquelas urgueiras,
tree | aquilo é um penedo!
| tree | INF1 Aquilo para ali há penedos!
| tree | É tudo penedos!
| tree | INF2 O que é que fazem?
| tree | Lá demos com uma rodeira.
| tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 E ficámos naquela rodeira, eu mais o meu compadre Eustáquio – Deus lhe perdoe.
| tree | INF1 Pois, exactamente.
| tree | INF2 Com as saquinhas.
| tree | E a água a cair.
| tree | | tree | INF2 Então o meu pai deu…
| tree | | tree | INF1 É um caminhinho que faz aí nos matos.
| tree | INF2 Um caminho que se…
| tree | Abrem os, os [pausa] os carros, que às vezes fazem aquelas rodeiras, não é?
| tree | | tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 E estava ali aquela rodeira dos carros passarem,
| tree | estava ali…
| tree | "Bem, paramos aqui nesta rodeira a ver para onde é que esta rodeira segue".
| tree | E nós ficámos naquele lugar
| tree | e eles cortaram outra vez, sempre à direita.
| tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 A cortar, a cortar, a cortar para aqui para os lados do Granjal.
| tree | E eles disseram assim: [pausa] "Vós ficaides a cantar a Morgadinha"
| tree | [pausa] que era alta, não é?
| tree | Cantávamos alto.
| tree | "Ficais a cantar a Morgadinha".
| tree | O meu compadre Eustáquio sabia-a muito bem!
| tree | "Para nós E nós vamos ver para onde segue esta rodeira".
| tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 "E depois por o cantar, nós vimos atrás deles sem nos perder.
| tree | Porque senão assim depois perdemos,
| tree | se não dizedes nada, perdemos-nos uns dos outros
| tree | e aqui andamos".
| tree | Bem, assim foi.
| tree | O meu compadre começa a cantar e eu começo a cantar.
| tree | Eu tinha os meus dezasseis, dezassete anos.
| tree | E [vocalização] E pronto.
| tree | E eu lá E eu lá ia,
| tree | lá estivemos a cantar.
| tree | Passado de quase uma hora, eu disse assim: "Perderam-se na serra.
| tree | Agora é que eles andam perdidos.
| tree | Olhe, nós temos que estar aqui, aguentar aqui até de manhã.
| tree | Nós [vocalização] quando é de manhã estamos mortos, com tanto relo".
| tree | Pois estava aquele relo a cair, aquele gelo, aquele relo a cair, a cair, a cair, a cair.
| tree | "Já estamos todos orvalhadinhos"!
| tree | Já estávamos todos orvalhados!
| tree | INF1 Ai Jesus!
| tree | INF2 "Ó pai"!
| tree | um berro longe
| tree | e eu assim: "Ai!
| tree | É mesmo no cimo"!
| tree | INF1 Aquele matagal!
| tree | INF2 Começámos a cantar,
| tree | e eles lá foram,
| tree | lá vieram,
| tree | lá vieram,
| tree | [pausa] lá vieram…
| tree | INF1 Eles era para os ouvirem, para saberem onde vocês estavam.
| tree | INF2 Lá vieram,
| tree | lá vieram,
| tree | lá vieram,
| tree | e lá vieram depois então ter connosco.
| tree | E diz ele assim: "Estamos [vocalização] não sei em que sítio é.
| tree | E agora pegamos na saca
| tree | e já vamos sempre nesta rodeira para irmos outra vez ter ao mesmo sítio aonde nós"…
| tree | INF1 Aonde vocês estavam.
| tree | INF2 "Aonde nós tínhamos a cova é que andamos a seguir para aquele lado".
| tree | INF1 Pelo, pelo cântico [vocalização] Pelo cântico eles vinham lá ter.
| tree | INF2 Ora, lá tornámos a ir, e na mesma coisa.
| tree | Mais de três horas que nós demorámos a chegar ao mesmo sítio, com a saquinha, de noite.
| tree | INF2 Caíamos aqui,
| tree | além,
| tree | caíamos aqui,
| tree | além.
| tree | E até que demos lá com o carreiro, lá viemos.
| tree | passar da ribeirinha – pimba! –, o meu pai – Deus lhe perdoe –, coitadinho, pimba!
| tree | INF1 Caiu para dentro.
| tree | INF2 Caiu para dentro da ribeira.
| tree | Era um escuro que não se via!
| tree | INF1 Não se via nada!
| tree | INF2 Digo logo eu: "Eu já deixo ficar a saca!
| tree | Parece que até foi castigo que nos deram!
| tree | Eu não quero saber da saca, nem saco.
| tree | O que me quero é ir embora,
| tree | quero lá saber disto".
| tree | E comecei assim a berrar.
| tree | Lá peguei na saca,
| tree | de cima da parede do senhor Ezequiel.
| tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 Eu e o meu pai lá tirámos a saca toda molhada,
| tree | lá deixámos a saca lá detrás dum do coiso, para o outro dia para enxugar ao sol.
| tree | E lá pega ele depois na minha saquinha…
| tree | INF1 Coitadinho!
| tree | INF2 E a dele ficou lá a escorrer.
| tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 Chegámos a passar ao lameirinho da do meu compadre Eustáquio, lá no moinho velho.
| tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 "Cai o meu compadre Eustáquio para a presa dele".
| tree | INF1 Ai, credo!
| tree | INF2 Lá ficou a saca dele também toda molhada dentro da presa.
| tree | INF1 Ai, que trabalhinhos!
| tree | INF2 Só arrumei Só arrumaram a minha saca e a do Labão.
| tree | INF1 Trabalhinhos que passavam!
| tree | INF2 Só arrum- arrumaram a minha saca e a do Labão…
| tree | Lá na corte dele.
| tree | Que tinha lá uma corte lá na serra.
| tree | Lá naquele lugar para baixo.
| tree | INF1 Pois, no moinho velho.
| tree | INF2 Pois.
| tree | Lá ficaram as duas arrumadas
| tree | e as outras…
| tree | Estava tudo cheio de água.
| tree | INF1 Lá ficaram a escorrer.
| tree | INF2 Lá as trouxeram e lá as secaram dentro da corte.
| tree | INF1 Pois, dentro da corte.
| tree | INF2 Lá as secaram.
| tree | Chegámos a casa…
| tree | O gado que nós tínhamos era daquela senhora.
| tree | Que era ao ganho.
| tree | Só as cabras é que eram nossas.
| tree | E também tínhamos o gado mas era menos.
| tree | Mas o gado era da senhora Elina.
| tree | | tree | INF2 Era as ovelhas.
| tree | INF1 É as ovelhas e os carneiros.
| tree | E as cabras.
| tree | INF2 Chegámos a casa,
| tree | a minha mãe e os meus irmãos a chorarem lágrimas de sangue porque o meu irmão, [vocalização] o chegante a mim – ainda hoje aqui esteve na minha casa, o meu Fábio –, tinha perdido as cabras todas.
| tree | INF1 Ai Virgem Mãe!
| tree | INF2 Chegámos a casa – eram três horas da manhã, com este sarilho.
| tree | Três horas da manhã que nós chegámos.
| tree | E foi ao escurecer que nós [pausa] tivemos isto.
| tree | INF1 Oh, valha-me Deus.
| tree | INF2 As cabras tinham desaparecido.
| tree | Olha, lá vai o meu pai – Deus lhe perdoe – e o meu irmão, o mais velho, o Fabrício,
| tree | e lá vai a minha mãe,
| tree | e lá vão todos à pergunta das cabras.
| tree | Lá estavam lá metidas na serra, de cima dos calhabouços…
| tree | INF1 Pois, elas fogem para os calhabouços por causa dos lobos.
| tree | INF2 E lá estavam as cabrinhas.
| tree | Quando chegaram a casa…
| tree | INF1 Elas em lhe cheirando os lobos, fogem para o penedo mais alto que podem.
| tree | INF2 Quando chegaram a casa…
| tree | | tree | INF1 É as pedras.
| tree | É pedras.
| tree | Os penedos grandes!
| tree | INF2 É pedras, calhaus, penedos.
| tree | E elas vão sempre para cima daqueles muros.
| tree | INF1 Fogem por causa dos bichos.
| tree | INF2 Para verem os lobos.
| tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 Para verem os lobos.
| tree | São muito finas.
| tree | [pausa] E lá chegaram a casa era de manhã.
| tree | E nós a cuidar que as cabrinhas estavam todas comidas dos lobos.
| tree | Está a ver?
| tree | A tirarmos dum lado íamos perdendo do outro?
| tree | INF1 Pois.
| tree | INF2 Cada um com aquilo que é seu!
| tree | Deus me livre!
| tree | Nunca mais!
| tree | Foi a primeira vez que fizemos aquilo e a última.
| tree | INF1 Nunca mais.
| tree | INF2 Nunca mais andámos lá nos carvões.
| tree | INF1 Dava muito trabalhinho, dava!
| tree | Olha que o meu marido passou-me ele passou bem poucos trabalhos!
| |